50 anos na vanguarda
por Edson Cipó
sábado, 17 de setembro de 2022
quarta-feira, 14 de setembro de 2022
segunda-feira, 26 de abril de 2021
Começou no Rio depois Brasília, Belo Horizonte, Porto Alegre e São Paulo .... eu trabalhava com o Capital Inicial, que abria o show do Sting ...
sexta-feira, 13 de novembro de 2020
quarta-feira, 26 de agosto de 2020
“Revirar o Mundo – Pandemia e Recomeço”
De: Edson Cipó
|
SINOPSE:
Um índio, um negro e um renegado português, que
representam a base da raça brasileira, se contaminam com o novo coronavírus, se
encontram e se conhecem num leito de hospital. Passam dias difíceis, relatam
suas trajetórias pela vida, e fazem reflexões sobre a morte e planos para um
futuro próximo.
“Revirar
o Mundo – Pandemia e Recomeço”
De: Edson Cipó
Chego na escola atrasado, tem uma fila na entrada,
depois outra no elevador, podia ir pela escada, nove andares, já tinha feito
isto antes, mas agora estava carregando uma mochila pesada, pensei ... a Madona
nos seus 62 anos iria pela escada, por isso tem aquela saúde, enquanto subia,
lembrava de Rocky Balboa, personagem de Sylvester Stallone, nos seus
treinamentos, e animava-se em continuar, percebi grupos de alunos comentando
cartazes pelos corredores, mas não tinha tempo de parar. Há mais de dez anos,
queria fazer este curso, havia conseguido uma vaga depois de um preparo
dificílimo, sabia que teria que esforçar-se para conclui-lo em quatro anos,
ainda era a terceira aula, tinha um grande desafio pela frente, estava
realizando um sonho, sentia que subir pela escada, significava fisicamente o
empenho, a disciplina, a coragem que iria precisar, seria graduado em educação.
Quando chego na sala, a porta já estava fechada, bato e aguardo, enquanto
arrumo o crachá no peito, sou recebido por um dos professores, que diz:
— Boa noite, a aula já começou, porque
chegou atrasado Sr. Nelson?
Respondi, ofegante e mostrando a mochila:
— Vim pela escada.
— Entre, acomode-se, estamos dando um
aviso importante.
E continuou:
— Todos sabem o que está acontecendo?
Vocês viram os cartazes nos corredores?
Um dos alunos diz:
— As aulas serão suspensas?
Começou um falatório, todos queriam a palavra ao mesmo
tempo, ele pede silencio e diz:
— Sim, todas as atividades estão
suspensas por quinze dias, como medida preventiva para conter o avanço da
pandemia do coronavírus, hoje não haverá aulas, estão
dispensados, não parem pelo caminho, evitem aglomerações, o vírus pode estar em
qualquer lugar.
Em minutos estava na rua, era a primeira vez que ouvia
falar sobre o vírus, misturava um sentimento de preocupação e medo, não sabia o
que estava acontecendo, chateado por não haver aula, pressentia que algo estava
por vir, queria chegar logo em casa, estava longe, teria que atravessar a
cidade alternado metrô, trem e ônibus, e chegando, cuidar das atividades
domesticas, ver o jornal, e atualizar as correspondências antes de dormir. No
dia seguinte iria trabalhar de porteiro em uma casa noturna, como freelancer
nos fins de semana, e durante a semana, leciono inglês, para alunos
particulares.
Levanto cedo, ligo nos jornais e vejo as manchetes “As
reações do Brasil ao vírus que está chegado a 300 casos no pais, lista de
shows, festivais e lançamentos de filmes cancelados”. Em seguida, recebo uma
ligação do gerente da casa noturna, onde eu iria trabalhar, avisado que não
funcionaria no fim de semana, que eu deveria ficar em casa, pois fazia parte do
grupo de risco. Já imaginei, que as aulas de línguas, também iriam paralisar,
na sequência foram canceladas as aulas de yoga, academia, as consultas com médico,
dentista e acupuntura. Passei os próximos dias mergulhado na internet, foi um
bombardeio de informações repetidas e desencontradas, e depois de uma semana a
situação estava assim: “O Brasil chega a 900 casos, com 11 mortes, na Itália
627 mortes em 24 horas”.
Ficar em casa sozinho, é como estar numa aeronave
vagando pelo espaço, parece que o tempo nunca vai acabar, uso como instrumentos
de navegação, um computador antigo, dois celulares, um telefone fixo e um rádio
a pilha, a cada dez dias aproximadamente, faço um pouso num entreposto
comercial, para compras de alimentos e medicamentos, antes de sair um ritual de
preparação, aparo as unhas das mãos, prendo cabelos e barba, coloco máscara,
roupas de mangas compridas, chapéu e óculos. Na volta, entro pela área de
serviço, troco roupas e sapatos, lavo as compras com água e sabão, tomo um
detalhado banho, um chá quente, rezo um pai nosso, tranco as portas e guardo as
chaves.
Faço aqui, uma sugestão aos “universitários”, alguns até
já foram meus alunos, para criarem um capacete, tipo bolha oval, transparente,
acoplado a um respirador, tipo mini tubo de oxigênio com filtros, e autonomia
para muitas horas, sendo possível recarregar em postos pela cidade, deveria ter
sensores auditivos, com a função de selecionar o que desejasse ouvir num
ambiente, sensores aromáticos, com filtros e opções de escolha, sensores de
visão, com recursos de “zoom”, com alerta para quem tivesse positivo para
doenças contagiosas, num raio de cinquenta metros, e acesso a pesquisas no google
pelo pensamento, através de um pequeno chip instalado no cérebro. Mas enquanto não ficar pronto, vamos
seguindo com o que temos.
No início da quarentena, elaborei uma agenda de
atividades diárias, eram estudos, exercícios físicos, banho de sol, concluir
projetos da gaveta, entre outras coisas, mas não cumpri nenhuma, parecia estar
numa espécie de transe, desejando que alguém me despertasse e dissesse o que
fazer, para onde ir.
Vagarosamente acompanho as mudanças. As pessoas trocam
conhecimentos e experiências, existe uma generosidade nas relações, aprendi a
usar o Zoom e Google Meet, reiniciei remotamente as aulas de educador, novas
palavras, novos sentidos, como “home office”, “lives”, “lockdown”, “fake news”,
fazem parte do cotidiano.
Assustadoramente, o número de vítimas vai aumentando,
parece inevitável o contagio, os dias ficam curtos, as noites longas, as notas
de falecimentos de amigos e conhecidos, cria um ambiente de medo, angustia,
ansiedade e depressão. O país atravessa uma crise sanitária, política e
consequentemente financeira, se por um lado aumenta a solidariedade entre as
pessoas, por outro lado aumenta o egoísmo, a falta de respeito a agressividade
covarde e inversões dos valores morais.
Protegido em casa por quase três meses, numa noite de
sábado, decidi pedir uma pizza por telefone, era uma tentativa de reação,
degustar uma pizza com um bom vinho, acompanhado de boa música, traria um
pequeno prazer, e ainda sobraria metade para o café da manhã. Passado uma hora,
sou surpreendido por uma insistente buzina de moto, lembro da pizza, e vou
receber no portão, vejo o entregador sem máscara, e pergunto:
— Por que não toca a campainha, ao
invés de ficar buzinando como louco, quer acordar toda vizinhança? Por que não
está usando máscara?
Ele responde que havia esquecido a máscara, e enquanto
entregava a pizza com uma das mãos, enxugava o nariz com a outra.
Perguntei:
— Você está resfriado?
Ele responde que não, que era o vento frio da noite,
que provocava uma coriza, paguei em dinheiro e não quis pegar o troco, queria
me livrar dele rápido.
Entro em casa com a pizza na mão, já arrependido de
ter me distraído com a segurança de isolamento, na mesa o vinho aberto, lembrei
de ter lido que o vinho combate ao vírus, e pensei em abrir outra garrafa,
coloquei uma gravação do bolero de Ravel no toca disco, e acompanhando a dança,
indo do ternário, para o binário e quaternário, devorava a pizza e pensava: “Se
tudo der errado, fica sendo aqui uma despedida honrosa”.
No final do dia seguinte, senti uma irritação na
garanta, tomei um chá quente e fui dormir, pela manhã acordei com muita dor no
corpo, dor de cabeça, sentia febre, mas não tinha como medir, a garganta ardia,
não tinha vontade de comer, passei o dia todo na cama, quando tentava
levantar-me, sentia muito cansaço. Precisava pedir ajuda, mas não sabia como,
se estivesse com o vírus, poderia contaminar um amigo, ou parente. No dia
seguinte, resolvi ir ao pronto socorro, se pedisse um Uber, poderia contaminar
o motorista, era melhor ir a pé, antes de sair, tentei ligar para um irmão que
mora perto e avisar o que estava acontecendo, mas o telefone deu caixa postal,
o outro irmão, eu sabia que estava no trabalho, e não queria incomoda-lo,
poderia ligar depois, peguei os documentos, o cartão de credito, e fui em
direção a uma UBS, no caminho pensava: “Meu Deus, porque comigo? Tenho tido tanto cuidado, será que por um
pequeno descuido, eu seria castigado? ”
Chegando lá, fiquei isolado para ser examinado e
questionado, esperei por quatro horas para ser atendido, a conversa resultou em
minha transferência para um hospital da região, novamente uma espera de mais
duas horas, a maior parte das pessoas na sala de recepção, eram de idosos. Um
senhor mais velho que reclamava com a atendente, me chamou a atenção, tinha os
cabelos tingidos de caju, usava calça de tergal e sapatos de bico fino, era
engraçado a tentativa de disfarçar a idade nos cabelos, e as roupas que
denunciava o quanto era antigo. Passado um tempo me chamaram, fui informado que
ficaria internado para tratamento e acompanhamento, depois de medicado fui
encaminhado para um quarto, onde tinham dois pacientes, e quatro camas que
ficavam em paralelo, de um lado a porta de entrada, do outro uma janela, me
indicaram a terceira cama, pedi ao enfermeiro para ficar próximo à janela, mas
foi negado, estava exausto, assustado, dormi profundamente.
Acordo cedo, aos poucos me dou conta que estou num
hospital, ouço muita gente tossindo e gemidos de dor, como era possível aquilo
estar acontecendo comigo, apesar da idade, me alimento bem, treino em academia,
participo de corridas, não tenho doença crônica, e se não tivesse pedido aquela
pizza, estaria em casa tranquilo. A cama próxima à janela, estava ocupada, à
minha direita mais duas camas, todos ainda dormiam, pensei em não fazer
barulho, procurei o celular para ver as horas, estava sem bateria, queria
avisar alguém, aos meus irmãos, meus amigos, poderia colocar nas redes sociais,
o que estava acontecendo, mas não podia, estava totalmente isolado, com pessoas
estranhas, num lugar triste e amedrontador, sentia dificuldade em respirar, e a
possibilidade de precisar de um respirador, e tiver que dividir com alguém mais
novo, era assustadora, seria minha sentença de morte, eu não podia morrer
assim, não tinha avisado ninguém de onde estava, e se eu morresse, não teria
velório, nem homenagens, estava pensando em fazer uma promessa pra Deus, quando
um enfermeiro apareceu na porta, acenei com a mão, ele respondeu acenando,
perguntei as horas, ele informou, e a nossa conversa acordou o cara que estava
próximo à janela, foi quando vi que era o senhor dos cabelos tingidos de caju, que estava na
recepção reclamando, cumprimentei-o dizendo bom dia, mas ele não respondeu, os
outros dois parceiros do quarto, também acordaram e nos cumprimentamos, ficamos
em silencio um longo período, até quando retorna o enfermeiro e pergunta por um
nome, o cara da janela responde, foi quando fiquei sabendo que se chamava Sr.
Orestes. Pedi ao enfermeiro um carregador para o celular, mostrando o aparelho,
ele disse que o modelo era muito antigo, e seria difícil achar um, pedi uma
caneta e umas folhas de papel, e no final da tarde me trouxeram. Com grande
esforço me sentei na cama e comecei a escrever algumas lembranças, quando o Sr.
Orestes pergunta:
— Vai fazer um testamento?
Olhei para ele, vi que tinha um esboço de sorriso no
rosto, e disse:
— Prazer, meu nome é Nelson.
Ele estendeu a mão dizendo:
— Orestes.
Respondi:
— Não posso te dar a mão, você poderá
me contaminar.
Ficamos rindo
da ocasião, nisso o senhor que estava à minha direita, também se apresenta,
dizendo:
— Prazer, meu nome é Alex.
Perguntei:
— E o cara perto da porta?
O Sr. Alex responde:
— Parece inconsciente, ele não fala
nada.
Ficamos conversando sobre futebol, política, pandemia,
e a certa hora o Sr. Orestes diz:
— “Os
sobreviventes terão inveja dos que morreram”. Esta frase eu ouço desde criança,
quando os mais velhos se referiam ao que aconteceria após uma terceira guerra
mundial, é isto o que vai acontecer, acho que é melhor morrer agora do que mais
tarde. E você Sr. Nelson, o que acha? Que ano você nasceu?
Querendo quebrar aquele
clima apocalíptico, respondi:
—
Nasci no mesmo ano que nasceram, Michael Jackson, Prince, Cazuza ...
E o Sr. Orestes completa:
—
Todos eles já morreram.
Continuei:
—
Madona, Marina Silva, Sharon Stone. Ganhamos a primeira copa mundial de
futebol, 5 a 2 contra a Suécia, foi o ano que o mundo conheceu o Brasil. Penso
que agora, passamos por um momento de transição, onde o futuro está sendo
antecipado, muitas mudanças que já estavam em curso, estão consolidando-se, no
trabalho, na saúde pública, nos hábitos de consumo e higiene, nas artes,
esportes, educação, na religião, em tudo, entraremos numa nova era, onde a
presença do bem, será maior do que o mal. Eu não quero morrer agora, tenho
muitas coisas para fazer, e se Deus quiser, vou sair fora dessa, e você em que
ano nasceu?
Ele ficou pensativo,
parecia viajar no tempo, e diz:
—
Tenho setenta e quatro anos, sou professor aposentado, vim de Portugal com a
família, depois de um conflito com o governo, eu tinha dezesseis. Lecionei
história por muito tempo, vi o Brasil ser campeão do mundo cinco vezes, assisti
ao vivo as vitórias de Ayrton Senna, vi a capital sair do Rio e ir para
Brasília, sobrevivi a uma ditadura, tive mens bens confiscados no plano Collor.
Casei quatro vezes, e nunca quis ter filhos. As pessoas não gostam de crianças,
gostam de projetar seus sonhos frustrados, acreditando que um dia seus filhos
irão realiza-los, que na velhice serão amparados, de alimentar seu ego
narcisista em se ver refletido em alguém. É desumano gerar uma vida, onde o
sistema educacional é falido, os alimentos são carregados de agrotóxicos, o
sistema de saúde que só visa o lucro, o trabalho é escravo. A forma mais
funcional de poupar sofrimento humano, é não os ter. E você, é casado, tem
filhos?
Respondi:
— Casei uma vez e separei, mas no
casamento não tive filhos. Tive uma filha que só conheci quando estava adulta, hoje
ela tem quase quarenta anos. Quando jovem, fui passar um carnaval em Salvador-BA,
no primeiro dia arrumei uma namorada, ficamos juntos até quarta-feira de
cinzas, depois vim embora e perdi o contato. Passado um tempo, ela me escreve
dizendo que teria um filho, que eu era o pai, fiquei maluco, achei que era
mentira, peguei um ônibus e fui até lá. No começo ela não quis me receber,
depois concordou em conversar e disse que tinha um namorado, e que ele iria
assumir a criança, que era melhor eu me afastar. Não pensei duas vezes, vim
embora, naquele tempo ainda jovem, não pensava direito. Quando a menina tinha
mais de vinte anos, resolveu me conhecer, veio à São Paulo e ficou comigo por
uma semana, impressionante que ela era igualzinha a mãe, depois ela casou-se e
foi morar no Piauí, nunca mais tive contato. E você Alex, tem filhos?
Silêncio, o Sr. Alex já estava dormindo, encerramos a
conversa e também fomos dormir, mas antes tinha que fazer uma oração, em pensamento
com um sentimento de fé, de uma certeza que eu não sabia de onde vinha, pedi a
Deus que permitisse a minha cura, que se conseguindo, eu dedicaria aos
trabalhos comunitários e pararia de beber. Era uma promessa.
Logo cedo, muito barulho
no quarto, as presenças de vários enfermeiros, com roupas de astronauta,
carregavam uma maca e levavam o paciente que estava próximo à porta, perguntei:
—
O que houve?
O Sr. Alex responde:
—
Infelizmente, ele não resistiu.
O Sr. Orestes, que estava
acordando diz:
—
Estamos aqui para morrer.
Era o terceiro dia que
estava ali, a primeira vez que alguém morria ao meu lado, fiquei pensado que
poderia ter morrido durante o sono, eu não desejo morrer, a morte não é uma
opção ou uma possibilidade, é uma certeza, somos educados para a vida, e
esquecemos que vivemos para morrer, lembrei de uma frase de Victor Hugo: “
Morrer não é morrer, mas apenas mudar-se”, mas mudar para onde, a verdade é que
não somos preparados para este momento, ninguém sabe ao certo, o que acontece
depois da morte, e se for um lugar escuro e solitário, será que existe o
Purgatório?
Sou interrompido em meus
pensamentos pelo Sr. Alex que diz:
—
Tenho notado o medo que os médicos e enfermeiros demonstram ao se aproximar de
nós, vejo o pânico em seus olhos, não deve ser fácil o trabalho deles.
O Sr. Orestes diz:
—
Eles também morrerão, não tem para onde fugir, a vida é transitória, todo ser
humano, independente de força e poder, morrerá um dia, os mais velhos, ainda
podem viver de lembranças do passado, os mais jovens não têm passado. E você
Sr. Alex que faz na vida? Qual sua
idade?
—
Tenho trinta e oito anos, minha família é indígena, sou motorista numa empresa
de transportes, já vi a morte de frente várias vezes, uma vez fui assaltado, e
o ladrão disparou o revolver em minha cabeça, mas a bala não saiu, consegui
pegar a arma dele e imobiliza-lo, até chegar a polícia. Outra vez, sofri um
acidente, o caminhão caiu ribanceira abaixo, acordei num hospital depois de uma
semana. Minha mulher quer que eu deixe estre trabalho, mas eu não tenho outro.
O Sr. Orestes pergunta:
—
Tem filhos?
—
Sim, cinco meninas, acho que o mundo será dominado pelas mulheres, em casa são
sete, duas filhas do primeiro casamento, três do segundo, minha mãe e a sogra.
Estou há quatro meses fora de casa, moro em Guaxupé-MG, estava voltando quando
vim parar aqui, nem sei como peguei este vírus, nem posso pensar em morrer,
minha família depende de mim. Estou preocupado com o que vai acontecer daqui
para a frente, este ano está perdido, não terá as festas juninas, nem natal e réveillon,
nem corrida de São Silvestre, o ano que vem não terá o carnaval, se tiver, vai
ser diferente, e até aparecer uma vacina, vai morrer muita gente.
Lembrei de uma matéria
que havia lido em algum lugar, e disse:
— No futuro, os veículos serão
elétricos e automatizados, não haverá mais motoristas. É melhor mudar de
profissão. Vai diminuir a quase zero os acidentes de transito, as empresas de
seguros desaparecerão, as cidades serão menos barulhentas, sem poluição. As
impressoras 3D, estão ficando cada vez mais econômicas e rápidas. Na China eles
construíram um edifício comercial completo de seis andares, imprimindo. Até 2025,
10% de tudo que for produzido, será impresso em 3D. A inteligência artificial,
já substitui os humanos em várias funções.
O Sr. Orestes diz:
—
Se acontecer, nãos estaremos aqui para ver, morreremos antes.
Respondi:
—
A média de vida, aumenta em três meses ao ano, e crescentemente. Em breve
poderemos viver mais de cem anos.
O Sr. Alex pergunta:
—
E o que pretende fazer, com tanto tempo assim?
Não tinha pensado ainda,
foi como que um filme passasse por minha cabeça, desde a infância, a vida com
meus pais, os amigos, as escolas, as namoradas, casamento e separação, vários
trabalhos, as viagens, os sonhos, os projetos. Respondi:
—
Não sei, continuaria estudando, dando aulas, aprenderia outra língua, viajaria
pela Europa, poderia ser um candidato a presidente do Brasil.
Ficamos rindo, era um
raro momento de relaxamento num ambiente tão desesperador.
O Sr. Orestes diz:
—
O próximo presidente, terá que ser um salvador da pátria, o mito não deu certo.
O que você faria como presidente?
Parece que eu estava
esperando aquela pergunta, queria falar um monte de coisas, mas não saía nada,
as ideias vinham fora de ordem, quando ia dizer algo, vinha outro pensamento,
queria escrever e ter uma visão gráfica, peguei uma folha de papel uma caneta,
e de improviso comecei a falar:
— Bom, primeiro teria que arrumar
todos desfeitos e maus feitos do mito. Depois mudaria o sistema de
presidencialismo para o parlamentarismo. Acabaria com o foro privilegiado e o
fundo partidário. Criaria um grupo de conselheiros com todos os ex-presidentes
do Brasil. Eliminaria a existência de armas de fogo do nosso convívio, com leis
rígidas, desarmaria toda a sociedade. Investiria em pesquisas científicas e
educação gratuita para todos. Protegeria as terras indígenas e promoveria o
desmatamento zero. Instalaria Wi-Fi grátis em todas as metrópoles.
Regulamentaria o uso e cultivo da maconha, criando recursos, eliminado o
tráfico e desafogando o sistema prisional. Criaria leis, incentivando o plantio
de árvores frutíferas nos quintais e calçadas e reservaria todos os assentos em
transportes e lugares públicos para as pessoas preferenciais, não só os dez por
cento como é hoje. Incentivaria a fabricação de automóveis elétricos. Proibiria
a fabricação e circulação de automóveis à diesel, as propagandas de medicamentos
e bebidas alcoólicas, a fabricação, venda e uso de fogos de artifícios. Sei que
outras boas ideias aparecerão, estaria sempre de boa vontade, pronto para o bem
geral. Donald Trump começou com setenta anos, e ainda quer se reeleger. Tenho
um irmão mais novo, com propriedades no interior de Mato Grosso, e amigos
políticos na região, que foi convidado para ser candidato a vereador, acho que
este ano ele vai concorrer.
O Sr. Alex diz:
— Nossa você foi fundo, lembrei dos
mineiros Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves,
no momento não temos um candidato à altura para representar o Brasil, sempre
desejei que o futuro presidente fosse um índio de Minas Gerais, mas daria meu
voto a você, eu e os setenta por cento, que desejam um Brasil melhor.
Representamos aqui, a raça brasileira, um índio, um negro e um renegado
português.
O Sr. Orestes não gostou
da brincadeira, com cara bravo, falou quase gritando:
— Vocês são
sonhadores, o pior ainda estar por vir, depois desta pandemia, terá uma segunda
onda, outros novos vírus, novas crises, falta de alimento e água, e havendo uma
guerra, o hemisfério Norte será dizimado, os sobreviventes invadirão a América
do Sul, em busca de condições de vida, mais uma vez lembro da frase, “Os
sobreviventes terão inveja dos que morreram”, é melhor morrer agora do que
depois.
No começo daquela noite, o Sr.
Orestes começou a passar mal, uma forte crise de tosse e falta de ar, chamamos
o enfermeiro pelo botão de emergência, e rapidamente ele foi transferido para a
UTI. Pensei que viriam novos pacientes para ocuparem as vagas no quarto, mas
não veio ninguém, era um sinal que poderia estar diminuindo o número de
infectados.
Quarto dia pela manhã, entra o
enfermeiro e pergunta pelo meu nome, aceno com a mão, ele se aproxima e diz:
— O senhor será
transferido para outra ala do hospital, onde estão os pacientes com um bom
quadro de recuperação, passando por lá, poderá ter alta.
Olhei para o Alex que estendeu a mão,
me desejando boa sorte, retribui cumprimentando-o, e ele disse:
— Já que vai na frente,
reserva um lugar para mim, que logo mais eu te alcanço.
Concordei, afirmando com a cabeça.
Fui colocado numa cadeira de rodas, e empurrado para o novo destino, no caminho
passava pelas portas de outros quartos, e via muita gente sofrendo, pensei em
Deus e sentia uma enorme gratidão, por estar ali se recuperando, lembrei que
não havia pego o contado dos novos amigos de quarto, o Sr. Alex e Sr. Orestes,
talvez nunca mais iria vê-los. O novo quarto era maior, tinha seis camas, desta
vez fui colocado próximo à janela, de onde eu podia ver a rua, fiquei um longo
tempo em silêncio, olhando o movimento lá fora. Os novos parceiros de quarto,
demonstravam que não queriam conversar, todos pareciam ansiosos, como que
flutuando, talvez planejando o que fariam quando saíssem.
Fiquei por mais dois dias ali, a todo
momento recorria às minhas anotações, nas folhas amassadas e rabiscadas,
lembrava das conversas que tivera, e fazia novos registros. Percebi que tinha
um certo movimento de pacientes, entrando e saindo, não dava nem tempo de
procurar conversar, pensei em pedir emprestado um celular, mas tinha vergonha,
não queria incomodar ninguém.
No sexto
dia, fui comunicado que estava recebendo alta, que deveria ficar isolado em
casa, o médico perguntou se eu queria avisar alguém, para que viesse me buscar,
pense em ligar para meu irmão, mas achei melhor não falar nada, pedi para
chamar um Uber, ele disse que na porta do hospital, tinha um ponto de taxi, e
perguntou se eu tinha dinheiro, mostrei o cartão de credito, me levaram numa
cadeira de rodas até a porta, e sai andando para a rua, estava meio tonto e com
dores nas articulações. Peguei o primeiro carro da fila, disse o endereço ao
motorista, e seguimos em silencio.
Chegando
em casa, vi que os vasos de plantas que ficam na área coberta, onde não pega
chuva, estavam todos secos, imediatamente fui rega-los, alguns não tinham mais
jeito, coloquei o celular para carregar, liguei o computador e fui ver os
recados. Achei estranho, que não tinha recados nem na secretária eletrônica,
nem nas redes sociais, só tinha spam, e mensagens de pessoas que nem conheço,
não tinha correspondência na caixa do correio, nem contas. Havia passado uma
semana fora, e ninguém tinha notado. Se eu tivesse morrido no hospital, seria enterrado
sem velório, mas se tivesse morrido em casa sozinho, só seria descoberto quando
os urubus estivessem sobrevoando o telhado. Entrei no Google e pesquisei
“Brasil tem 56.197 óbitos e 1.284.214 casos confirmados de Covid-19”.
Olhei em
volta e me dei conta de tantas coisas que tenho, ou melhor que guardo, são
coisas que foram da minha avó, da minha mãe, que sobraram do casamento e
relacionamentos, coisas que tenho desde criança, ou adquiri durante a vida,
coisas que achei ou ganhei. São discos, livros, medalhas, quadros de arte,
diversas esculturas, material esportivo, instrumentos musicais, coleção de
miniaturas (mais de oitocentas peças), roupas novas que nunca usei ou que não
uso há mais de dez anos, vasos de plantas, da última vez que contei tinha mais
de duzentos, fora o que está plantado direto na terra, e os que vão nascendo pelo
quintal, com as sementes que vou jogando.
Se eu
tivesse morrido, todas aquelas coisas iriam para o lixo, ou com muita sorte
para uma prateleira de brechó, e seriam vendidas por uma merreca. Abri a geladeira,
e estava carregada de cervejas, não costumo fazer estoque, mas para não ter que
sair na quarentena, havia comprado várias caixas, e agora o que fazer com tudo
isto?
Liguei
para o meu irmão, o mesmo que eu havia tentado ligar antes de ir para o hospital,
minha sobrinha atende:
— Oi tio, como está? Anda sumido, meu pai foi
para o rancho, só volta quando tudo passar, ele deixou um recado, liguei na sua
casa algumas vezes, mas só dava secretária eletrônica, não quis deixar mensagem,
seu celular está sempre mudo, nunca mais te encontrei, por vezes passei na
frente de sua casa, estava sempre fechada, pensei que andava por São Paulo. Ele
disse que se você quiser ir para lá, é só avisar, que é para você ficar uns
quinze dias na casa de baixo, para passar a quarentena, e depois você vai para
casa grande, onde está todo o pessoal, ele mandou te avisar, que vai ser
candidato este ano, e quer que você vá ajuda-lo na campanha.
Pensei em contar tudo que
tinha acontecido, mas não tinha vontade, precisava de um colo, só queria ir
dormir na minha cama, quantas vezes tinha sonhado com ela, é onde posso
organizar meus pensamentos, fazer escolhas, tomar decisões, e acordar
rejuvenescido, com as energias reabilitadas, em condições de colocar em pratica
minhas relações com a família, com o trabalho, com uma nova rotina. Fui
apagando as luzes dos cômodos pela casa, até chegar no quarto, quando passei
pela cozinha, pensei: “Daqui, só preciso de um garfo e uma faca”.
Deitei, mas não conseguia
dormir, as conversas que tivera com os amigos do hospital, não saiam da cabeça,
pensava nas mudanças que desejava fazer, em tudo que tinha passado nas últimas
semanas, nos novos caminhos que estavam aparecendo, na promessa que havia feito
à Deus, de parar de beber, esta era a pior parte, mas não tinha que resolver
nada naquela hora. Durante à noite, levantei várias vezes para ir ao banheiro, lembrava
de pedaços de sonhos, com parentes que já haviam falecido, de situações sem
sentido, e que já tinha sonhado antes. Acordo cansado, não queria mais ver os
jornais, nem ligar o computador.
Depois do café, peguei
uma folha de papel em branco e uma caneta, comecei a anotar pensamentos e a
fazer uma lista:
Primeiro, na minha idade,
estou mais perto da linha de chegada do que a de partida, já passei a fase da “meia
idade”, não tenho tempo a perder, as transformações são lentas, tenho que
valorizar casa segundo. Vou concluir o curso de educador.
Segundo, vou me livrar
dos pertences que guardo e não faço uso, fazer circular as energias. Ficarei
com meia dúzia de livros e discos, um par de roupas, um violão, um celular, e o
computador, o resto vou vender, fazer doações. Não dá para entrar no mundo
novo, com um monte de coisas velhas, nem pensamentos velhos. E se eu não
avançar o limine do necessário, não sofrerei as consequências do excesso, nem
as doenças que ele provoca.
Terceiro, vou parar de
beber. Nas piores situações durante a vida, sempre teve a presença do álcool,
nas brigas com amigos, com parentes, com estranhos no transito, da filha que
não vi crescer, das vezes que fui roubado, ou perdi valores, quanto dinheiro já
gastei. Se eu não fizer mal a ninguém, não tenho que temer a vingança.
Quarto, vou para o
rancho, participar de uma vida social, onde eu possa ser útil e contribuir com
minha experiência e vontade, viver isolado faz parte do passado, do tempo de antes
da pandemia. Agora se faz necessário trajar a “túnica nupcial”.