segunda-feira, 26 de abril de 2021

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

“Revirar o Mundo – Pandemia e Recomeço”

 

 


De: Edson Cipó

 

 

SINOPSE:

Um índio, um negro e um renegado português, que representam a base da raça brasileira, se contaminam com o novo coronavírus, se encontram e se conhecem num leito de hospital. Passam dias difíceis, relatam suas trajetórias pela vida, e fazem reflexões sobre a morte e planos para um futuro próximo.

 

 

 

 


 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

“Revirar o Mundo – Pandemia e Recomeço”

 De: Edson Cipó

Chego na escola atrasado, tem uma fila na entrada, depois outra no elevador, podia ir pela escada, nove andares, já tinha feito isto antes, mas agora estava carregando uma mochila pesada, pensei ... a Madona nos seus 62 anos iria pela escada, por isso tem aquela saúde, enquanto subia, lembrava de Rocky Balboa, personagem de Sylvester Stallone, nos seus treinamentos, e animava-se em continuar, percebi grupos de alunos comentando cartazes pelos corredores, mas não tinha tempo de parar. Há mais de dez anos, queria fazer este curso, havia conseguido uma vaga depois de um preparo dificílimo, sabia que teria que esforçar-se para conclui-lo em quatro anos, ainda era a terceira aula, tinha um grande desafio pela frente, estava realizando um sonho, sentia que subir pela escada, significava fisicamente o empenho, a disciplina, a coragem que iria precisar, seria graduado em educação. Quando chego na sala, a porta já estava fechada, bato e aguardo, enquanto arrumo o crachá no peito, sou recebido por um dos professores, que diz:

Boa noite, a aula já começou, porque chegou atrasado Sr. Nelson?

Respondi, ofegante e mostrando a mochila:

Vim pela escada.

Entre, acomode-se, estamos dando um aviso importante.

E continuou:

Todos sabem o que está acontecendo? Vocês viram os cartazes nos corredores?

Um dos alunos diz:

As aulas serão suspensas?

Começou um falatório, todos queriam a palavra ao mesmo tempo, ele pede silencio e diz:

Sim, todas as atividades estão suspensas por quinze dias, como medida preventiva para conter o avanço da pandemia do coronavírus, hoje não haverá aulas, estão dispensados, não parem pelo caminho, evitem aglomerações, o vírus pode estar em qualquer lugar. 

Em minutos estava na rua, era a primeira vez que ouvia falar sobre o vírus, misturava um sentimento de preocupação e medo, não sabia o que estava acontecendo, chateado por não haver aula, pressentia que algo estava por vir, queria chegar logo em casa, estava longe, teria que atravessar a cidade alternado metrô, trem e ônibus, e chegando, cuidar das atividades domesticas, ver o jornal, e atualizar as correspondências antes de dormir. No dia seguinte iria trabalhar de porteiro em uma casa noturna, como freelancer nos fins de semana, e durante a semana, leciono inglês, para alunos particulares.

Levanto cedo, ligo nos jornais e vejo as manchetes “As reações do Brasil ao vírus que está chegado a 300 casos no pais, lista de shows, festivais e lançamentos de filmes cancelados”. Em seguida, recebo uma ligação do gerente da casa noturna, onde eu iria trabalhar, avisado que não funcionaria no fim de semana, que eu deveria ficar em casa, pois fazia parte do grupo de risco. Já imaginei, que as aulas de línguas, também iriam paralisar, na sequência foram canceladas as aulas de yoga, academia, as consultas com médico, dentista e acupuntura. Passei os próximos dias mergulhado na internet, foi um bombardeio de informações repetidas e desencontradas, e depois de uma semana a situação estava assim: “O Brasil chega a 900 casos, com 11 mortes, na Itália 627 mortes em 24 horas”. 

Ficar em casa sozinho, é como estar numa aeronave vagando pelo espaço, parece que o tempo nunca vai acabar, uso como instrumentos de navegação, um computador antigo, dois celulares, um telefone fixo e um rádio a pilha, a cada dez dias aproximadamente, faço um pouso num entreposto comercial, para compras de alimentos e medicamentos, antes de sair um ritual de preparação, aparo as unhas das mãos, prendo cabelos e barba, coloco máscara, roupas de mangas compridas, chapéu e óculos. Na volta, entro pela área de serviço, troco roupas e sapatos, lavo as compras com água e sabão, tomo um detalhado banho, um chá quente, rezo um pai nosso, tranco as portas e guardo as chaves.

Faço aqui, uma sugestão aos “universitários”, alguns até já foram meus alunos, para criarem um capacete, tipo bolha oval, transparente, acoplado a um respirador, tipo mini tubo de oxigênio com filtros, e autonomia para muitas horas, sendo possível recarregar em postos pela cidade, deveria ter sensores auditivos, com a função de selecionar o que desejasse ouvir num ambiente, sensores aromáticos, com filtros e opções de escolha, sensores de visão, com recursos de “zoom”, com alerta para quem tivesse positivo para doenças contagiosas, num raio de cinquenta metros, e acesso a pesquisas no google pelo pensamento, através de um pequeno chip instalado no cérebro. Mas enquanto não ficar pronto, vamos seguindo com o que temos.

No início da quarentena, elaborei uma agenda de atividades diárias, eram estudos, exercícios físicos, banho de sol, concluir projetos da gaveta, entre outras coisas, mas não cumpri nenhuma, parecia estar numa espécie de transe, desejando que alguém me despertasse e dissesse o que fazer, para onde ir.

Vagarosamente acompanho as mudanças. As pessoas trocam conhecimentos e experiências, existe uma generosidade nas relações, aprendi a usar o Zoom e Google Meet, reiniciei remotamente as aulas de educador, novas palavras, novos sentidos, como “home office”, “lives”, “lockdown”, “fake news”, fazem parte do cotidiano.

Assustadoramente, o número de vítimas vai aumentando, parece inevitável o contagio, os dias ficam curtos, as noites longas, as notas de falecimentos de amigos e conhecidos, cria um ambiente de medo, angustia, ansiedade e depressão. O país atravessa uma crise sanitária, política e consequentemente financeira, se por um lado aumenta a solidariedade entre as pessoas, por outro lado aumenta o egoísmo, a falta de respeito a agressividade covarde e inversões dos valores morais.

Protegido em casa por quase três meses, numa noite de sábado, decidi pedir uma pizza por telefone, era uma tentativa de reação, degustar uma pizza com um bom vinho, acompanhado de boa música, traria um pequeno prazer, e ainda sobraria metade para o café da manhã. Passado uma hora, sou surpreendido por uma insistente buzina de moto, lembro da pizza, e vou receber no portão, vejo o entregador sem máscara, e pergunto:

Por que não toca a campainha, ao invés de ficar buzinando como louco, quer acordar toda vizinhança? Por que não está usando máscara?

Ele responde que havia esquecido a máscara, e enquanto entregava a pizza com uma das mãos, enxugava o nariz com a outra.

Perguntei:

Você está resfriado?

Ele responde que não, que era o vento frio da noite, que provocava uma coriza, paguei em dinheiro e não quis pegar o troco, queria me livrar dele rápido.

Entro em casa com a pizza na mão, já arrependido de ter me distraído com a segurança de isolamento, na mesa o vinho aberto, lembrei de ter lido que o vinho combate ao vírus, e pensei em abrir outra garrafa, coloquei uma gravação do bolero de Ravel no toca disco, e acompanhando a dança, indo do ternário, para o binário e quaternário, devorava a pizza e pensava: “Se tudo der errado, fica sendo aqui uma despedida honrosa”.

No final do dia seguinte, senti uma irritação na garanta, tomei um chá quente e fui dormir, pela manhã acordei com muita dor no corpo, dor de cabeça, sentia febre, mas não tinha como medir, a garganta ardia, não tinha vontade de comer, passei o dia todo na cama, quando tentava levantar-me, sentia muito cansaço. Precisava pedir ajuda, mas não sabia como, se estivesse com o vírus, poderia contaminar um amigo, ou parente. No dia seguinte, resolvi ir ao pronto socorro, se pedisse um Uber, poderia contaminar o motorista, era melhor ir a pé, antes de sair, tentei ligar para um irmão que mora perto e avisar o que estava acontecendo, mas o telefone deu caixa postal, o outro irmão, eu sabia que estava no trabalho, e não queria incomoda-lo, poderia ligar depois, peguei os documentos, o cartão de credito, e fui em direção a uma UBS, no caminho pensava: “Meu Deus, porque comigo?  Tenho tido tanto cuidado, será que por um pequeno descuido, eu seria castigado? ”

Chegando lá, fiquei isolado para ser examinado e questionado, esperei por quatro horas para ser atendido, a conversa resultou em minha transferência para um hospital da região, novamente uma espera de mais duas horas, a maior parte das pessoas na sala de recepção, eram de idosos. Um senhor mais velho que reclamava com a atendente, me chamou a atenção, tinha os cabelos tingidos de caju, usava calça de tergal e sapatos de bico fino, era engraçado a tentativa de disfarçar a idade nos cabelos, e as roupas que denunciava o quanto era antigo. Passado um tempo me chamaram, fui informado que ficaria internado para tratamento e acompanhamento, depois de medicado fui encaminhado para um quarto, onde tinham dois pacientes, e quatro camas que ficavam em paralelo, de um lado a porta de entrada, do outro uma janela, me indicaram a terceira cama, pedi ao enfermeiro para ficar próximo à janela, mas foi negado, estava exausto, assustado, dormi profundamente.

Acordo cedo, aos poucos me dou conta que estou num hospital, ouço muita gente tossindo e gemidos de dor, como era possível aquilo estar acontecendo comigo, apesar da idade, me alimento bem, treino em academia, participo de corridas, não tenho doença crônica, e se não tivesse pedido aquela pizza, estaria em casa tranquilo. A cama próxima à janela, estava ocupada, à minha direita mais duas camas, todos ainda dormiam, pensei em não fazer barulho, procurei o celular para ver as horas, estava sem bateria, queria avisar alguém, aos meus irmãos, meus amigos, poderia colocar nas redes sociais, o que estava acontecendo, mas não podia, estava totalmente isolado, com pessoas estranhas, num lugar triste e amedrontador, sentia dificuldade em respirar, e a possibilidade de precisar de um respirador, e tiver que dividir com alguém mais novo, era assustadora, seria minha sentença de morte, eu não podia morrer assim, não tinha avisado ninguém de onde estava, e se eu morresse, não teria velório, nem homenagens, estava pensando em fazer uma promessa pra Deus, quando um enfermeiro apareceu na porta, acenei com a mão, ele respondeu acenando, perguntei as horas, ele informou, e a nossa conversa acordou o cara que estava próximo à janela, foi quando vi que era o senhor  dos cabelos tingidos de caju, que estava na recepção reclamando, cumprimentei-o dizendo bom dia, mas ele não respondeu, os outros dois parceiros do quarto, também acordaram e nos cumprimentamos, ficamos em silencio um longo período, até quando retorna o enfermeiro e pergunta por um nome, o cara da janela responde, foi quando fiquei sabendo que se chamava Sr. Orestes. Pedi ao enfermeiro um carregador para o celular, mostrando o aparelho, ele disse que o modelo era muito antigo, e seria difícil achar um, pedi uma caneta e umas folhas de papel, e no final da tarde me trouxeram. Com grande esforço me sentei na cama e comecei a escrever algumas lembranças, quando o Sr. Orestes pergunta:

Vai fazer um testamento?

Olhei para ele, vi que tinha um esboço de sorriso no rosto, e disse:

Prazer, meu nome é Nelson.

Ele estendeu a mão dizendo:

Orestes.

Respondi:

Não posso te dar a mão, você poderá me contaminar.

 Ficamos rindo da ocasião, nisso o senhor que estava à minha direita, também se apresenta, dizendo:

Prazer, meu nome é Alex.

Perguntei:

E o cara perto da porta?

O Sr. Alex responde:

Parece inconsciente, ele não fala nada.

Ficamos conversando sobre futebol, política, pandemia, e a certa hora o Sr. Orestes diz:

“Os sobreviventes terão inveja dos que morreram”. Esta frase eu ouço desde criança, quando os mais velhos se referiam ao que aconteceria após uma terceira guerra mundial, é isto o que vai acontecer, acho que é melhor morrer agora do que mais tarde. E você Sr. Nelson, o que acha? Que ano você nasceu?

Querendo quebrar aquele clima apocalíptico, respondi:

Nasci no mesmo ano que nasceram, Michael Jackson, Prince, Cazuza ...

E o Sr. Orestes completa:

Todos eles já morreram.

Continuei:

 

Madona, Marina Silva, Sharon Stone. Ganhamos a primeira copa mundial de futebol, 5 a 2 contra a Suécia, foi o ano que o mundo conheceu o Brasil. Penso que agora, passamos por um momento de transição, onde o futuro está sendo antecipado, muitas mudanças que já estavam em curso, estão consolidando-se, no trabalho, na saúde pública, nos hábitos de consumo e higiene, nas artes, esportes, educação, na religião, em tudo, entraremos numa nova era, onde a presença do bem, será maior do que o mal. Eu não quero morrer agora, tenho muitas coisas para fazer, e se Deus quiser, vou sair fora dessa, e você em que ano nasceu?

Ele ficou pensativo, parecia viajar no tempo, e diz:

Tenho setenta e quatro anos, sou professor aposentado, vim de Portugal com a família, depois de um conflito com o governo, eu tinha dezesseis. Lecionei história por muito tempo, vi o Brasil ser campeão do mundo cinco vezes, assisti ao vivo as vitórias de Ayrton Senna, vi a capital sair do Rio e ir para Brasília, sobrevivi a uma ditadura, tive mens bens confiscados no plano Collor. Casei quatro vezes, e nunca quis ter filhos. As pessoas não gostam de crianças, gostam de projetar seus sonhos frustrados, acreditando que um dia seus filhos irão realiza-los, que na velhice serão amparados, de alimentar seu ego narcisista em se ver refletido em alguém. É desumano gerar uma vida, onde o sistema educacional é falido, os alimentos são carregados de agrotóxicos, o sistema de saúde que só visa o lucro, o trabalho é escravo. A forma mais funcional de poupar sofrimento humano, é não os ter. E você, é casado, tem filhos?

Respondi:

Casei uma vez e separei, mas no casamento não tive filhos. Tive uma filha que só conheci quando estava adulta, hoje ela tem quase quarenta anos. Quando jovem, fui passar um carnaval em Salvador-BA, no primeiro dia arrumei uma namorada, ficamos juntos até quarta-feira de cinzas, depois vim embora e perdi o contato. Passado um tempo, ela me escreve dizendo que teria um filho, que eu era o pai, fiquei maluco, achei que era mentira, peguei um ônibus e fui até lá. No começo ela não quis me receber, depois concordou em conversar e disse que tinha um namorado, e que ele iria assumir a criança, que era melhor eu me afastar. Não pensei duas vezes, vim embora, naquele tempo ainda jovem, não pensava direito. Quando a menina tinha mais de vinte anos, resolveu me conhecer, veio à São Paulo e ficou comigo por uma semana, impressionante que ela era igualzinha a mãe, depois ela casou-se e foi morar no Piauí, nunca mais tive contato. E você Alex, tem filhos?

Silêncio, o Sr. Alex já estava dormindo, encerramos a conversa e também fomos dormir, mas antes tinha que fazer uma oração, em pensamento com um sentimento de fé, de uma certeza que eu não sabia de onde vinha, pedi a Deus que permitisse a minha cura, que se conseguindo, eu dedicaria aos trabalhos comunitários e pararia de beber. Era uma promessa.

Logo cedo, muito barulho no quarto, as presenças de vários enfermeiros, com roupas de astronauta, carregavam uma maca e levavam o paciente que estava próximo à porta, perguntei:

O que houve?

O Sr. Alex responde:

Infelizmente, ele não resistiu.

O Sr. Orestes, que estava acordando diz:

Estamos aqui para morrer.

Era o terceiro dia que estava ali, a primeira vez que alguém morria ao meu lado, fiquei pensado que poderia ter morrido durante o sono, eu não desejo morrer, a morte não é uma opção ou uma possibilidade, é uma certeza, somos educados para a vida, e esquecemos que vivemos para morrer, lembrei de uma frase de Victor Hugo: “ Morrer não é morrer, mas apenas mudar-se”, mas mudar para onde, a verdade é que não somos preparados para este momento, ninguém sabe ao certo, o que acontece depois da morte, e se for um lugar escuro e solitário, será que existe o Purgatório?

Sou interrompido em meus pensamentos pelo Sr. Alex que diz:

Tenho notado o medo que os médicos e enfermeiros demonstram ao se aproximar de nós, vejo o pânico em seus olhos, não deve ser fácil o trabalho deles.

O Sr. Orestes diz:

Eles também morrerão, não tem para onde fugir, a vida é transitória, todo ser humano, independente de força e poder, morrerá um dia, os mais velhos, ainda podem viver de lembranças do passado, os mais jovens não têm passado. E você Sr. Alex que faz na vida?  Qual sua idade?

Tenho trinta e oito anos, minha família é indígena, sou motorista numa empresa de transportes, já vi a morte de frente várias vezes, uma vez fui assaltado, e o ladrão disparou o revolver em minha cabeça, mas a bala não saiu, consegui pegar a arma dele e imobiliza-lo, até chegar a polícia. Outra vez, sofri um acidente, o caminhão caiu ribanceira abaixo, acordei num hospital depois de uma semana. Minha mulher quer que eu deixe estre trabalho, mas eu não tenho outro.

O Sr. Orestes pergunta:

Tem filhos?

Sim, cinco meninas, acho que o mundo será dominado pelas mulheres, em casa são sete, duas filhas do primeiro casamento, três do segundo, minha mãe e a sogra. Estou há quatro meses fora de casa, moro em Guaxupé-MG, estava voltando quando vim parar aqui, nem sei como peguei este vírus, nem posso pensar em morrer, minha família depende de mim. Estou preocupado com o que vai acontecer daqui para a frente, este ano está perdido, não terá as festas juninas, nem natal e réveillon, nem corrida de São Silvestre, o ano que vem não terá o carnaval, se tiver, vai ser diferente, e até aparecer uma vacina, vai morrer muita gente.

Lembrei de uma matéria que havia lido em algum lugar, e disse:

No futuro, os veículos serão elétricos e automatizados, não haverá mais motoristas. É melhor mudar de profissão. Vai diminuir a quase zero os acidentes de transito, as empresas de seguros desaparecerão, as cidades serão menos barulhentas, sem poluição. As impressoras 3D, estão ficando cada vez mais econômicas e rápidas. Na China eles construíram um edifício comercial completo de seis andares, imprimindo. Até 2025, 10% de tudo que for produzido, será impresso em 3D. A inteligência artificial, já substitui os humanos em várias funções.

O Sr. Orestes diz:

Se acontecer, nãos estaremos aqui para ver, morreremos antes.

Respondi:

A média de vida, aumenta em três meses ao ano, e crescentemente. Em breve poderemos viver mais de cem anos.

O Sr. Alex pergunta:

E o que pretende fazer, com tanto tempo assim?

Não tinha pensado ainda, foi como que um filme passasse por minha cabeça, desde a infância, a vida com meus pais, os amigos, as escolas, as namoradas, casamento e separação, vários trabalhos, as viagens, os sonhos, os projetos. Respondi:

Não sei, continuaria estudando, dando aulas, aprenderia outra língua, viajaria pela Europa, poderia ser um candidato a presidente do Brasil.

Ficamos rindo, era um raro momento de relaxamento num ambiente tão desesperador.

O Sr. Orestes diz:

O próximo presidente, terá que ser um salvador da pátria, o mito não deu certo. O que você faria como presidente?

Parece que eu estava esperando aquela pergunta, queria falar um monte de coisas, mas não saía nada, as ideias vinham fora de ordem, quando ia dizer algo, vinha outro pensamento, queria escrever e ter uma visão gráfica, peguei uma folha de papel uma caneta, e de improviso comecei a falar:

Bom, primeiro teria que arrumar todos desfeitos e maus feitos do mito. Depois mudaria o sistema de presidencialismo para o parlamentarismo. Acabaria com o foro privilegiado e o fundo partidário. Criaria um grupo de conselheiros com todos os ex-presidentes do Brasil. Eliminaria a existência de armas de fogo do nosso convívio, com leis rígidas, desarmaria toda a sociedade. Investiria em pesquisas científicas e educação gratuita para todos. Protegeria as terras indígenas e promoveria o desmatamento zero. Instalaria Wi-Fi grátis em todas as metrópoles. Regulamentaria o uso e cultivo da maconha, criando recursos, eliminado o tráfico e desafogando o sistema prisional. Criaria leis, incentivando o plantio de árvores frutíferas nos quintais e calçadas e reservaria todos os assentos em transportes e lugares públicos para as pessoas preferenciais, não só os dez por cento como é hoje. Incentivaria a fabricação de automóveis elétricos. Proibiria a fabricação e circulação de automóveis à diesel, as propagandas de medicamentos e bebidas alcoólicas, a fabricação, venda e uso de fogos de artifícios. Sei que outras boas ideias aparecerão, estaria sempre de boa vontade, pronto para o bem geral. Donald Trump começou com setenta anos, e ainda quer se reeleger. Tenho um irmão mais novo, com propriedades no interior de Mato Grosso, e amigos políticos na região, que foi convidado para ser candidato a vereador, acho que este ano ele vai concorrer.

O Sr. Alex diz:

Nossa você foi fundo, lembrei dos mineiros Juscelino Kubitschek e Tancredo Neves, no momento não temos um candidato à altura para representar o Brasil, sempre desejei que o futuro presidente fosse um índio de Minas Gerais, mas daria meu voto a você, eu e os setenta por cento, que desejam um Brasil melhor. Representamos aqui, a raça brasileira, um índio, um negro e um renegado português.

O Sr. Orestes não gostou da brincadeira, com cara bravo, falou quase gritando:

Vocês são sonhadores, o pior ainda estar por vir, depois desta pandemia, terá uma segunda onda, outros novos vírus, novas crises, falta de alimento e água, e havendo uma guerra, o hemisfério Norte será dizimado, os sobreviventes invadirão a América do Sul, em busca de condições de vida, mais uma vez lembro da frase, “Os sobreviventes terão inveja dos que morreram”, é melhor morrer agora do que depois.

No começo daquela noite, o Sr. Orestes começou a passar mal, uma forte crise de tosse e falta de ar, chamamos o enfermeiro pelo botão de emergência, e rapidamente ele foi transferido para a UTI. Pensei que viriam novos pacientes para ocuparem as vagas no quarto, mas não veio ninguém, era um sinal que poderia estar diminuindo o número de infectados.

Quarto dia pela manhã, entra o enfermeiro e pergunta pelo meu nome, aceno com a mão, ele se aproxima e diz:

O senhor será transferido para outra ala do hospital, onde estão os pacientes com um bom quadro de recuperação, passando por lá, poderá ter alta.

Olhei para o Alex que estendeu a mão, me desejando boa sorte, retribui cumprimentando-o, e ele disse:

Já que vai na frente, reserva um lugar para mim, que logo mais eu te alcanço.

Concordei, afirmando com a cabeça. Fui colocado numa cadeira de rodas, e empurrado para o novo destino, no caminho passava pelas portas de outros quartos, e via muita gente sofrendo, pensei em Deus e sentia uma enorme gratidão, por estar ali se recuperando, lembrei que não havia pego o contado dos novos amigos de quarto, o Sr. Alex e Sr. Orestes, talvez nunca mais iria vê-los. O novo quarto era maior, tinha seis camas, desta vez fui colocado próximo à janela, de onde eu podia ver a rua, fiquei um longo tempo em silêncio, olhando o movimento lá fora. Os novos parceiros de quarto, demonstravam que não queriam conversar, todos pareciam ansiosos, como que flutuando, talvez planejando o que fariam quando saíssem.

Fiquei por mais dois dias ali, a todo momento recorria às minhas anotações, nas folhas amassadas e rabiscadas, lembrava das conversas que tivera, e fazia novos registros. Percebi que tinha um certo movimento de pacientes, entrando e saindo, não dava nem tempo de procurar conversar, pensei em pedir emprestado um celular, mas tinha vergonha, não queria incomodar ninguém.

No sexto dia, fui comunicado que estava recebendo alta, que deveria ficar isolado em casa, o médico perguntou se eu queria avisar alguém, para que viesse me buscar, pense em ligar para meu irmão, mas achei melhor não falar nada, pedi para chamar um Uber, ele disse que na porta do hospital, tinha um ponto de taxi, e perguntou se eu tinha dinheiro, mostrei o cartão de credito, me levaram numa cadeira de rodas até a porta, e sai andando para a rua, estava meio tonto e com dores nas articulações. Peguei o primeiro carro da fila, disse o endereço ao motorista, e seguimos em silencio.

Chegando em casa, vi que os vasos de plantas que ficam na área coberta, onde não pega chuva, estavam todos secos, imediatamente fui rega-los, alguns não tinham mais jeito, coloquei o celular para carregar, liguei o computador e fui ver os recados. Achei estranho, que não tinha recados nem na secretária eletrônica, nem nas redes sociais, só tinha spam, e mensagens de pessoas que nem conheço, não tinha correspondência na caixa do correio, nem contas. Havia passado uma semana fora, e ninguém tinha notado. Se eu tivesse morrido no hospital, seria enterrado sem velório, mas se tivesse morrido em casa sozinho, só seria descoberto quando os urubus estivessem sobrevoando o telhado. Entrei no Google e pesquisei “Brasil tem 56.197 óbitos e 1.284.214 casos confirmados de Covid-19”.

Olhei em volta e me dei conta de tantas coisas que tenho, ou melhor que guardo, são coisas que foram da minha avó, da minha mãe, que sobraram do casamento e relacionamentos, coisas que tenho desde criança, ou adquiri durante a vida, coisas que achei ou ganhei. São discos, livros, medalhas, quadros de arte, diversas esculturas, material esportivo, instrumentos musicais, coleção de miniaturas (mais de oitocentas peças), roupas novas que nunca usei ou que não uso há mais de dez anos, vasos de plantas, da última vez que contei tinha mais de duzentos, fora o que está plantado direto na terra, e os que vão nascendo pelo quintal, com as sementes que vou jogando.

Se eu tivesse morrido, todas aquelas coisas iriam para o lixo, ou com muita sorte para uma prateleira de brechó, e seriam vendidas por uma merreca. Abri a geladeira, e estava carregada de cervejas, não costumo fazer estoque, mas para não ter que sair na quarentena, havia comprado várias caixas, e agora o que fazer com tudo isto?

Liguei para o meu irmão, o mesmo que eu havia tentado ligar antes de ir para o hospital, minha sobrinha atende:

Oi tio, como está? Anda sumido, meu pai foi para o rancho, só volta quando tudo passar, ele deixou um recado, liguei na sua casa algumas vezes, mas só dava secretária eletrônica, não quis deixar mensagem, seu celular está sempre mudo, nunca mais te encontrei, por vezes passei na frente de sua casa, estava sempre fechada, pensei que andava por São Paulo. Ele disse que se você quiser ir para lá, é só avisar, que é para você ficar uns quinze dias na casa de baixo, para passar a quarentena, e depois você vai para casa grande, onde está todo o pessoal, ele mandou te avisar, que vai ser candidato este ano, e quer que você vá ajuda-lo na campanha.

Pensei em contar tudo que tinha acontecido, mas não tinha vontade, precisava de um colo, só queria ir dormir na minha cama, quantas vezes tinha sonhado com ela, é onde posso organizar meus pensamentos, fazer escolhas, tomar decisões, e acordar rejuvenescido, com as energias reabilitadas, em condições de colocar em pratica minhas relações com a família, com o trabalho, com uma nova rotina. Fui apagando as luzes dos cômodos pela casa, até chegar no quarto, quando passei pela cozinha, pensei: “Daqui, só preciso de um garfo e uma faca”.

Deitei, mas não conseguia dormir, as conversas que tivera com os amigos do hospital, não saiam da cabeça, pensava nas mudanças que desejava fazer, em tudo que tinha passado nas últimas semanas, nos novos caminhos que estavam aparecendo, na promessa que havia feito à Deus, de parar de beber, esta era a pior parte, mas não tinha que resolver nada naquela hora. Durante à noite, levantei várias vezes para ir ao banheiro, lembrava de pedaços de sonhos, com parentes que já haviam falecido, de situações sem sentido, e que já tinha sonhado antes. Acordo cansado, não queria mais ver os jornais, nem ligar o computador.

Depois do café, peguei uma folha de papel em branco e uma caneta, comecei a anotar pensamentos e a fazer uma lista:

Primeiro, na minha idade, estou mais perto da linha de chegada do que a de partida, já passei a fase da “meia idade”, não tenho tempo a perder, as transformações são lentas, tenho que valorizar casa segundo. Vou concluir o curso de educador.

Segundo, vou me livrar dos pertences que guardo e não faço uso, fazer circular as energias. Ficarei com meia dúzia de livros e discos, um par de roupas, um violão, um celular, e o computador, o resto vou vender, fazer doações. Não dá para entrar no mundo novo, com um monte de coisas velhas, nem pensamentos velhos. E se eu não avançar o limine do necessário, não sofrerei as consequências do excesso, nem as doenças que ele provoca.

Terceiro, vou parar de beber. Nas piores situações durante a vida, sempre teve a presença do álcool, nas brigas com amigos, com parentes, com estranhos no transito, da filha que não vi crescer, das vezes que fui roubado, ou perdi valores, quanto dinheiro já gastei. Se eu não fizer mal a ninguém, não tenho que temer a vingança.

Quarto, vou para o rancho, participar de uma vida social, onde eu possa ser útil e contribuir com minha experiência e vontade, viver isolado faz parte do passado, do tempo de antes da pandemia. Agora se faz necessário trajar a “túnica nupcial”.

 

                                                                                

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